domingo, 18 de abril de 2010

Crônica do relacionamento: Numa noite qualquer, o sétimo andar


701

Onde ele estaria até essa hora? No trabalho? Não mais. Ele sai às oito. Como ele conseguiria realizar a proeza de se demorar três horas para chegar a casa, sendo que, normalmente, mesmo com aquele transito, de uma hora não passava.
Agora, além de trabalhar o dia inteiro, cansada, tenho que ficar me preocupando com marmanjo? Já num basta a menina? E olha que ela dá algum trabalho, para quem é cuidada pela babá. Fui até a janela verificar se via o carro dele se aproximando.
Mas e se tivesse acontecido um acidente? Acidentes acontecem, não é mesmo? E se o acidente foi grave, ele foi levado ao hospital, está consciente e não tem condições de ligar? Pior ainda, vai que roubaram o celular na confusão? Ou então não roubaram nada, ele pode ter sofrido amnésia, quem sabe? Acho melhor ligar a televisão... Canal de notícias...
“Dois sujeitos, um homem e uma mulher de aproximadamente quarenta anos, foram encontrados assassinados na saída de um motel em...” Meu Deus! E se for aquele safado? Tinha que ir logo naquele motelzinho fuleiro? Com aquela vagabunda? Bom mesmo se forem eles... Merecido! Eles lá fazendo não-sei-quantas orgias e eu aqui, desesperada, olhando criança.
Acho que estou pirando. Mas tenho toda a razão. Como ele pode chegar uma hora dessas e não me avisar antes? Pra que existe celular? Pra tirar fotos com aquela vagabunda ali?

A maçaneta girou lentamente. Antes mesmo de abrir a porta, o homem é abordado por sua mulher, raivosa, seguido pela difícil pergunta “Onde você estava até essa hora?”
Estava com outra mulher, fazendo sexo selvagem num motel barato. Ela provavelmente acreditaria nessa. Engraçado, mas mentira. E com conseqüências desagradáveis.
Estava trabalhando até mais tarde, essas coisas acontecem nessa época do ano, você sabe como é, amor. Parecia uma boa desculpa. Ah, não. Já foi usada da última vez.
Estava tomando uma cerveja e aproveitando a noite fresca, milagre essa época do ano, você sabe como é, amor. Não, não. Aí ela começaria com aquela velha conversa ‘nós não fazemos nada juntos’, uma puta mentira, e não teríamos um fim de noite agradável.
Fui assaltado, mas acabei conversando com o cara e ele desistiu de levar a carteira e o celular. Não é um milagre, amor? Hm... conveniente. Mas seguido de algum sermão quanto à resistência na hora do assalto.
E se eu contasse a verdade, para variar? A não... isso acarretaria a conseqüência numero três, e não quero discutir essa noite.
“Fui ao hospital porque estou com muita dor de cabeça. Disseram que o que eu preciso é apenas deitar e descansar, por causa do stress” respondi. Ela me olhou penalizada. Funcionou. Me abraçou bem apertado e beijou-me. Um fundo de ressentimento vibrou em mim. Mas foi logo esquecido ao relembrar as conseqüências possíveis.
“Vem amor, vamos deitar que já ta tarde. Pensei tantas bobagens! Que bom que você está bem... Agora vem” E eu apenas a segui, mais uma noite.


702

Desliguei o chuveiro e fiquei um tempo a pensar. Que dia cansativo. Mais trabalho do que nunca, nessa época do ano, mas será recompensador depois. O que fazer para comer? O menino já está deitado. Era a minha noite de cuidar dele. Nos revezamos e assim não temos que terceirizar a educação dele. É complicado, mas a gente ainda consegue.
Tinha a noite e casa só pra mim. Semana passada as garotas até vieram para cá e tomamos algumas conversando besteiras. Hoje eu preferi ficar por minha conta. Ler aquele livro que esta me esperando há dias, tomar algo sozinha, um vinho, pode ser.
Li um livro com o meu menino hoje. Não é que ele está melhorando? Daqui uns meses já vai estar lendo que é uma beleza. Incentivo é o que não falta. Talvez eu possa escrever sobre isso. Sobre como incentivar a leitura a crianças pequenas, eu poderia abordar o método que experimentamos nele...
Deitei na cama e comecei a ler. Era um romance bom, excelente hora para aproveitar a leitura, com vinho do lado e a criança na cama. Esbocei um sorriso de satisfação.

“Ainda acordada” Beijei-a “Boa leitura?”
“Ótima! E o jogo?”
“Ganhamos, amor!”
“Pude perceber quando você entrou com um sorriso estampado aí. Que bom!” Ela abaixou o livro. Deitei-me em seu peito.
“E o garotão?”
“Dormindo. Lemos um bocado hoje. Ele está progredindo”
“Eu também reparei isso. Ta funcionando né?”
“Uhum” Ficamos em silêncio. Eu ouvia o coração dela bater calmamente.
“O nosso vizinho... aquele... o da frente. Sabe quem é?”
“Aquele casal com a menina da idade do nosso garoto?”
“Isso. Eu vi o cara lá no bar. Gente boa, sabia?” ela balançou negativamente a cabeça “Acho que teve alguma emergência em casa, cheguei até a ficar preocupado. Sempre desligando as ligações que recebia. Até que no intervalo se despediu com muita pressa e foi embora. Nem viu a virada espetacular que deu o jogo. Uma pena” ela concordou. Não conhecíamos muito bem o casal, mas sabíamos que eram inseparáveis, um verdadeiro casal apaixonado e feliz. Antes de apagar a luz do abajur, desejei, mais uma vez, que não fosse nada grave.