quarta-feira, 14 de julho de 2010

Felizac: Carpe Diem


Súbito ele chegou. O Sol contra o corpo, que Maria julgava sarado e bronzeado, se aproximando aos poucos. Uma tarde na praia é capaz de proporcionar esses momentos. Ela estava feliz, nenhuma preocupação momentânea, a benção da ignorância. Quando deu por si, ele já estava ao seu lado. Sentou-se cuidadosamente na cadeira ao lado da dela, sorriu e beijou-a.

Ela retribuiu com muito gosto. Eram definitivamente feitos um para o outro, fisicamente. Afagou sua nuca, beijou-lhe carinhosamente, trocaram algumas palavras que não seriam capazes de reproduzir de novo, é o calor do momento.

Ele perguntou sobre o livro que ela lia, embora não prestasse atenção. A mulher respondeu automaticamente o nome do best-seller indicado pela moça da livraria. Ela gostava de manter sua mente em forma com livros, embora julgasse qualquer coisa que fosse publicada digna de leitura. Em seguida deu uma pequena explicação sobre o romance, nada que a orelha do livro não fosse capaz de informar.

Ele beijou-a mais uma vez, apaixonados era o que qualquer um poderia dizer no momento. Depois perguntou sobre o dia, como estava sendo, se o mar estava bom para ela, se o calor não a incomodava e se precisava de protetor solar. Ela agradeceu e maquinalmente respondeu que estava tudo perfeito. E quanto ao protetor, ela agradeceria se ele passasse um pouco mais para assegurar a proteção. Não houve hesitação.

Trocaram mais algumas carícias antes dele se despedir. Já está ficando tarde, ela disse, acho que tenho algum compromisso. Ele sorriu e concordou, indo como chegou, contra o sol, a silhueta resolvendo algumas indagações de Maria.

Não muito tempo depois uma garotinha se aproxima e senta-se ao lado da mulher. Por um longo instante esta busca informações que a diriam quem era aquela menininha que a olhava durante um bom tempo, com um risinho no rosto. Por que sentaram na minha cadeira, mamãe? O pai já está esperando a gente lá no calçadão. E tudo ficou mais claro. Fechou as cadeiras, guardou as coisas, tomou a criança pela mão, beijou o marido, entrou no carro e só mais tarde arrependeu-se de, não ter, sequer, perguntado ao homem da praia o seu nome.

domingo, 18 de abril de 2010

Crônica do relacionamento: Numa noite qualquer, o sétimo andar


701

Onde ele estaria até essa hora? No trabalho? Não mais. Ele sai às oito. Como ele conseguiria realizar a proeza de se demorar três horas para chegar a casa, sendo que, normalmente, mesmo com aquele transito, de uma hora não passava.
Agora, além de trabalhar o dia inteiro, cansada, tenho que ficar me preocupando com marmanjo? Já num basta a menina? E olha que ela dá algum trabalho, para quem é cuidada pela babá. Fui até a janela verificar se via o carro dele se aproximando.
Mas e se tivesse acontecido um acidente? Acidentes acontecem, não é mesmo? E se o acidente foi grave, ele foi levado ao hospital, está consciente e não tem condições de ligar? Pior ainda, vai que roubaram o celular na confusão? Ou então não roubaram nada, ele pode ter sofrido amnésia, quem sabe? Acho melhor ligar a televisão... Canal de notícias...
“Dois sujeitos, um homem e uma mulher de aproximadamente quarenta anos, foram encontrados assassinados na saída de um motel em...” Meu Deus! E se for aquele safado? Tinha que ir logo naquele motelzinho fuleiro? Com aquela vagabunda? Bom mesmo se forem eles... Merecido! Eles lá fazendo não-sei-quantas orgias e eu aqui, desesperada, olhando criança.
Acho que estou pirando. Mas tenho toda a razão. Como ele pode chegar uma hora dessas e não me avisar antes? Pra que existe celular? Pra tirar fotos com aquela vagabunda ali?

A maçaneta girou lentamente. Antes mesmo de abrir a porta, o homem é abordado por sua mulher, raivosa, seguido pela difícil pergunta “Onde você estava até essa hora?”
Estava com outra mulher, fazendo sexo selvagem num motel barato. Ela provavelmente acreditaria nessa. Engraçado, mas mentira. E com conseqüências desagradáveis.
Estava trabalhando até mais tarde, essas coisas acontecem nessa época do ano, você sabe como é, amor. Parecia uma boa desculpa. Ah, não. Já foi usada da última vez.
Estava tomando uma cerveja e aproveitando a noite fresca, milagre essa época do ano, você sabe como é, amor. Não, não. Aí ela começaria com aquela velha conversa ‘nós não fazemos nada juntos’, uma puta mentira, e não teríamos um fim de noite agradável.
Fui assaltado, mas acabei conversando com o cara e ele desistiu de levar a carteira e o celular. Não é um milagre, amor? Hm... conveniente. Mas seguido de algum sermão quanto à resistência na hora do assalto.
E se eu contasse a verdade, para variar? A não... isso acarretaria a conseqüência numero três, e não quero discutir essa noite.
“Fui ao hospital porque estou com muita dor de cabeça. Disseram que o que eu preciso é apenas deitar e descansar, por causa do stress” respondi. Ela me olhou penalizada. Funcionou. Me abraçou bem apertado e beijou-me. Um fundo de ressentimento vibrou em mim. Mas foi logo esquecido ao relembrar as conseqüências possíveis.
“Vem amor, vamos deitar que já ta tarde. Pensei tantas bobagens! Que bom que você está bem... Agora vem” E eu apenas a segui, mais uma noite.


702

Desliguei o chuveiro e fiquei um tempo a pensar. Que dia cansativo. Mais trabalho do que nunca, nessa época do ano, mas será recompensador depois. O que fazer para comer? O menino já está deitado. Era a minha noite de cuidar dele. Nos revezamos e assim não temos que terceirizar a educação dele. É complicado, mas a gente ainda consegue.
Tinha a noite e casa só pra mim. Semana passada as garotas até vieram para cá e tomamos algumas conversando besteiras. Hoje eu preferi ficar por minha conta. Ler aquele livro que esta me esperando há dias, tomar algo sozinha, um vinho, pode ser.
Li um livro com o meu menino hoje. Não é que ele está melhorando? Daqui uns meses já vai estar lendo que é uma beleza. Incentivo é o que não falta. Talvez eu possa escrever sobre isso. Sobre como incentivar a leitura a crianças pequenas, eu poderia abordar o método que experimentamos nele...
Deitei na cama e comecei a ler. Era um romance bom, excelente hora para aproveitar a leitura, com vinho do lado e a criança na cama. Esbocei um sorriso de satisfação.

“Ainda acordada” Beijei-a “Boa leitura?”
“Ótima! E o jogo?”
“Ganhamos, amor!”
“Pude perceber quando você entrou com um sorriso estampado aí. Que bom!” Ela abaixou o livro. Deitei-me em seu peito.
“E o garotão?”
“Dormindo. Lemos um bocado hoje. Ele está progredindo”
“Eu também reparei isso. Ta funcionando né?”
“Uhum” Ficamos em silêncio. Eu ouvia o coração dela bater calmamente.
“O nosso vizinho... aquele... o da frente. Sabe quem é?”
“Aquele casal com a menina da idade do nosso garoto?”
“Isso. Eu vi o cara lá no bar. Gente boa, sabia?” ela balançou negativamente a cabeça “Acho que teve alguma emergência em casa, cheguei até a ficar preocupado. Sempre desligando as ligações que recebia. Até que no intervalo se despediu com muita pressa e foi embora. Nem viu a virada espetacular que deu o jogo. Uma pena” ela concordou. Não conhecíamos muito bem o casal, mas sabíamos que eram inseparáveis, um verdadeiro casal apaixonado e feliz. Antes de apagar a luz do abajur, desejei, mais uma vez, que não fosse nada grave.

sexta-feira, 5 de março de 2010

Simplicidade


"É difícil ser simples. Frase sussurrada, mas perfeita. Diz o que tem que dizer. Comunica. Vai ao ponto.


Somos perdulários nas descrições. Gastamos saliva à toa, exageramos na dose, perdemos um tempo dourando a pílula, sem reparar que poderíamos fazer tudo que fazemos de maneira rápida e funcional.
Para isso, é preciso ter noções de economia. Porque simplicidade é reduzir os excessos. É feijão com arroz, preto no branco. Nada de purpurina, orquestra, recheio e encenações. Não precisamos de muita produção para viver. Basta saber dizer sim e não, e dissecar o que for mais complicado. Parece complicado? Mas é tão simples...

[...] Ser simples é facilitar a vida dos outros e a própria. Vale para se vestir, para declarar amor, para pedir informação. [...]

Concisão é uma questão de hábito e autoconfiança. As pessoas exageram porque acham que não estão sendo notadas. Usam colar, pulseira, brinco, piercing, bracelete e ainda fazem tatuagem desde o pescoço até o umbigo: impossível enxergar alguém por trás de tanto adereço. Simplicidade é quase nudez, é quase silêncio, é quando chegamos bem próximo da verdade. Simplicidade é a busca do absoluto. É escapar de armadilhas e descongestionar o pensamento. O trajeto mais curto para felicidade."


(Texto extraído do livro Non-Stop de Martha Medeiros)

domingo, 28 de fevereiro de 2010

Novas Velhas Paixões



Não mentirei. Consigo entender plenamente o porquê de Vinícius de Moraes ser viciado na sensação de estar constantemente apaixonado. A descoberta do outro, de nova vida, de novos cheiros, novos tatos. A curiosidade inerente à paixão. É uma embriaguez sinestésica.

É uma droga. A droga da paixão. Com os mesmos efeitos viciantes de anestésicos. O mesmo sentimento extasiado. Crises de abstinência. Tudo num pacote só. Te deixa nas nuvens e te arrasta pelo asfalto. Como é bom. E não é masoquismo.

Mas e quando só é descoberto anos depois de conhecer alguém, que o ama? Aí a estória é um pouco diferente. Você ainda não a conhece por completo. Nunca sentiu o corpo dela. Nunca a teve tão perto. Isso tudo será novo a você. Pelo menos com aquela pessoa.

Parece algo inteiramente piegas, mas seria hipocrisia falar que não gosta do cheiro de um romance novo. Um carinho inesperado, novas experiências - compartilhadas ou não.

Entretanto, ouso trocar essa aventura de uma nova paixão por um desafio maior: o desafio de apaixonar-se todos os dias por uma mesma pessoa diferente. De acordar todas as manhãs com o mesmo ser, fisicamente, da noite anterior, mas com um humor totalmente distinto.

É a rotina que destrói essa sensação que Vinícius sempre procurava. É a rotina que acaba com os casamentos, com os relacionamentos.

Não é para sair por aí fazendo maluquices ou demostrações mais que públicas de afeto. Como já dizia Quintana "Se tu me amas, ama-me baixinho, não o grites de cima dos telhados / deixa em paz os passarinhos". É aí que o rotina muda.

Sabemos que ele ou ela nos ama. Eles também sabem que nós os amamos. Entretanto a necessidade do "eu te amo" é vital. Tanto para nós mesmos (dizer isto liberta, tente) como para aqueles que recebem um "eu te amo" depois de um dia cansado de trabalho, trânsito e agora aquela criança gritando por atenção. Isso muda o humor tanto quanto um "bom dia" pela manhã de alguém.

Carinho não mata. Carinhos sussurrados muito menos. Aumentam a auto estima e o amor em si (se fosse algo que pudesse aumentar ou diminuir). Dizer isto, pequenas declarações de amor depois de cinquenta anos de casados, isso sim é um desafio, uma aventura e tanto.

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

O Felizac nosso de cada dia nos dai hoje


“- Melhorar a minha vida seria me tornar estúpido.
- Isso é estúpido.
- Então, estou no bom caminho. Não pode tirar uma parte dos meus neurônios? Se há bancos de órgãos, bancos de sangue, bancos de esperma, também deve haver bancos de neurônios, não é verdade? Assim, os que têm demasiados neurônios podem ceder alguns deles a todos aqueles que deles carecem. Além disso, isso seria um gesto humanitário. [...]
-Já pensou em consultar um psicanalista?
- Já consultei um psicanalista - disse em tom impotente Antoine, elevando as mãos.
-E?
- Segundo ele, tudo isto é perfeitamente normal: eu não tenho patologia psíquica, não tenho... Você sabe o que ele me disse? “Aproveite a vida, meu rapaz, tranqüilize-se. Pare de encher a cabeça com coisas assim.” Que escola de psicanálise ele freqüentou para dizer isso? A Escola da Causa Donjuanesca?
- Bem. O que lhe posso propor - disse o médico - é ministrar-lhe Felizac. Em geral sou contra esse tipo de medicamentos, mas as suas tentativas de suicídio e de alcoolismo e o seu estado me levam a considerar esse tratamento. Mas isso não resolve nada, não se iluda.
- Eu quero justamente pensar menos, Ed.
- O Felizac tem ação tranqüilizante e antidepressiva. E precisamente do que você precisa. Mas não deixa de ter riscos, e por isso você deveria vir me ver todos os meses para que eu revise, ou não, o seu tratamento.
- Tem riscos? Como assim?
- Os pequenos efeitos secundários habituais dos medicamentos desse tipo: ressecamento das mucosas, possíveis vertigens, cansaço... E, sobretudo, uma demasiado agradável dependência. Você obrigatoriamente terá de ler a bula e seguir à risca a posologia.
- Com isso - perguntou Antoine, cheio de esperança - eu vou pensar menos?
-Você será quase um zumbi, eu lhe asseguro.A vida lhe parecerá mais simples, mais bela. O que será falso, certamente, mas você não estará consciente disso.”

Sim. Não seria uma excelente idéia a do nosso querido Antoine dividirmos nossos neurônios com os companheiros menos afortunados. Não seria o maior ato de caridade? Doce inocência sagaz.
Altas dosagens de Felizac parecem ter sido administradas para grande parte das pessoas. Aquelas que lêem Paulo Coelho e Veja. Aquelas que assistem a Globo e a tem com fonte primordial e indubitável de informação. Aquelas que tem Crepúsculo como seu livro de cabeceira. E aquelas que acham que o Brasil é nada mais que o país do futebol, mulher bonita e samba (sem entrar em mais detalhes, isso é assunto para um post futuro).

Com a quantidade de futilidade que ouvimos e falamos (sim, falamos também. Ou nunca se pegou conversando sobre o tempo com alguém na fila do ônibus?) o tempo todo, parecemos viciados em Felizac.

Pouco nos damos e não nos dão chance para surtar de vez enquanto. Sempre veem livros de autoajuda (Coelho na área), conselhos como “Tudo passa” ou “Sai dessa” ou “Quanta deprê por aqui, vou embora”. Mas, ei, podemos e devemos ‘surtar’ às vezes. Dar um tchau para algum desconhecido. Não entregar algum trabalho. Não comparecer a um encontro (mas faça o favor de desmarca-lo, lembre-se que seus limites terminam quando começa o do coleguinha) porque quer apenas ficar sozinho. Aquela necessidade de ter só a sua companhia.

Permita-se discordar quando vê algo errado. Permita-se não estar o tempo todo alegre. Permita-se a solidão. Permita-se uma caminhada. Permita-se agrados. Permita-se abstinência desse Felizac continuo a que somos abastecidos.

“Por que a gente não teria o direito de criticar, de achar certas pessoas babacas e fracas, sob pretexto de que teríamos um clima pesado e ciumento? Todo o mundo se comporta como se fôssemos todos iguais, como se fôssemos todos ricos, educados, poderosos, brancos, jovens, belos, machos, felizes, como se todos estivéssemos com boa saúde, como se todos tivéssemos um carrão... Mas isso, obviamente, não é verdade. Por isso, tenho o direito de gritar, de estar de mau humor, de não sorrir idiotamente todo o tempo, de dar a minha opinião quando vejo coisas não-normais e injustas, e até de insultar as pessoas. Tenho o direito de protestar.”
(Fragmentos retirados do livro Como me tornei estúpido, de Martin Page.)