domingo, 28 de fevereiro de 2010

Novas Velhas Paixões



Não mentirei. Consigo entender plenamente o porquê de Vinícius de Moraes ser viciado na sensação de estar constantemente apaixonado. A descoberta do outro, de nova vida, de novos cheiros, novos tatos. A curiosidade inerente à paixão. É uma embriaguez sinestésica.

É uma droga. A droga da paixão. Com os mesmos efeitos viciantes de anestésicos. O mesmo sentimento extasiado. Crises de abstinência. Tudo num pacote só. Te deixa nas nuvens e te arrasta pelo asfalto. Como é bom. E não é masoquismo.

Mas e quando só é descoberto anos depois de conhecer alguém, que o ama? Aí a estória é um pouco diferente. Você ainda não a conhece por completo. Nunca sentiu o corpo dela. Nunca a teve tão perto. Isso tudo será novo a você. Pelo menos com aquela pessoa.

Parece algo inteiramente piegas, mas seria hipocrisia falar que não gosta do cheiro de um romance novo. Um carinho inesperado, novas experiências - compartilhadas ou não.

Entretanto, ouso trocar essa aventura de uma nova paixão por um desafio maior: o desafio de apaixonar-se todos os dias por uma mesma pessoa diferente. De acordar todas as manhãs com o mesmo ser, fisicamente, da noite anterior, mas com um humor totalmente distinto.

É a rotina que destrói essa sensação que Vinícius sempre procurava. É a rotina que acaba com os casamentos, com os relacionamentos.

Não é para sair por aí fazendo maluquices ou demostrações mais que públicas de afeto. Como já dizia Quintana "Se tu me amas, ama-me baixinho, não o grites de cima dos telhados / deixa em paz os passarinhos". É aí que o rotina muda.

Sabemos que ele ou ela nos ama. Eles também sabem que nós os amamos. Entretanto a necessidade do "eu te amo" é vital. Tanto para nós mesmos (dizer isto liberta, tente) como para aqueles que recebem um "eu te amo" depois de um dia cansado de trabalho, trânsito e agora aquela criança gritando por atenção. Isso muda o humor tanto quanto um "bom dia" pela manhã de alguém.

Carinho não mata. Carinhos sussurrados muito menos. Aumentam a auto estima e o amor em si (se fosse algo que pudesse aumentar ou diminuir). Dizer isto, pequenas declarações de amor depois de cinquenta anos de casados, isso sim é um desafio, uma aventura e tanto.

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

O Felizac nosso de cada dia nos dai hoje


“- Melhorar a minha vida seria me tornar estúpido.
- Isso é estúpido.
- Então, estou no bom caminho. Não pode tirar uma parte dos meus neurônios? Se há bancos de órgãos, bancos de sangue, bancos de esperma, também deve haver bancos de neurônios, não é verdade? Assim, os que têm demasiados neurônios podem ceder alguns deles a todos aqueles que deles carecem. Além disso, isso seria um gesto humanitário. [...]
-Já pensou em consultar um psicanalista?
- Já consultei um psicanalista - disse em tom impotente Antoine, elevando as mãos.
-E?
- Segundo ele, tudo isto é perfeitamente normal: eu não tenho patologia psíquica, não tenho... Você sabe o que ele me disse? “Aproveite a vida, meu rapaz, tranqüilize-se. Pare de encher a cabeça com coisas assim.” Que escola de psicanálise ele freqüentou para dizer isso? A Escola da Causa Donjuanesca?
- Bem. O que lhe posso propor - disse o médico - é ministrar-lhe Felizac. Em geral sou contra esse tipo de medicamentos, mas as suas tentativas de suicídio e de alcoolismo e o seu estado me levam a considerar esse tratamento. Mas isso não resolve nada, não se iluda.
- Eu quero justamente pensar menos, Ed.
- O Felizac tem ação tranqüilizante e antidepressiva. E precisamente do que você precisa. Mas não deixa de ter riscos, e por isso você deveria vir me ver todos os meses para que eu revise, ou não, o seu tratamento.
- Tem riscos? Como assim?
- Os pequenos efeitos secundários habituais dos medicamentos desse tipo: ressecamento das mucosas, possíveis vertigens, cansaço... E, sobretudo, uma demasiado agradável dependência. Você obrigatoriamente terá de ler a bula e seguir à risca a posologia.
- Com isso - perguntou Antoine, cheio de esperança - eu vou pensar menos?
-Você será quase um zumbi, eu lhe asseguro.A vida lhe parecerá mais simples, mais bela. O que será falso, certamente, mas você não estará consciente disso.”

Sim. Não seria uma excelente idéia a do nosso querido Antoine dividirmos nossos neurônios com os companheiros menos afortunados. Não seria o maior ato de caridade? Doce inocência sagaz.
Altas dosagens de Felizac parecem ter sido administradas para grande parte das pessoas. Aquelas que lêem Paulo Coelho e Veja. Aquelas que assistem a Globo e a tem com fonte primordial e indubitável de informação. Aquelas que tem Crepúsculo como seu livro de cabeceira. E aquelas que acham que o Brasil é nada mais que o país do futebol, mulher bonita e samba (sem entrar em mais detalhes, isso é assunto para um post futuro).

Com a quantidade de futilidade que ouvimos e falamos (sim, falamos também. Ou nunca se pegou conversando sobre o tempo com alguém na fila do ônibus?) o tempo todo, parecemos viciados em Felizac.

Pouco nos damos e não nos dão chance para surtar de vez enquanto. Sempre veem livros de autoajuda (Coelho na área), conselhos como “Tudo passa” ou “Sai dessa” ou “Quanta deprê por aqui, vou embora”. Mas, ei, podemos e devemos ‘surtar’ às vezes. Dar um tchau para algum desconhecido. Não entregar algum trabalho. Não comparecer a um encontro (mas faça o favor de desmarca-lo, lembre-se que seus limites terminam quando começa o do coleguinha) porque quer apenas ficar sozinho. Aquela necessidade de ter só a sua companhia.

Permita-se discordar quando vê algo errado. Permita-se não estar o tempo todo alegre. Permita-se a solidão. Permita-se uma caminhada. Permita-se agrados. Permita-se abstinência desse Felizac continuo a que somos abastecidos.

“Por que a gente não teria o direito de criticar, de achar certas pessoas babacas e fracas, sob pretexto de que teríamos um clima pesado e ciumento? Todo o mundo se comporta como se fôssemos todos iguais, como se fôssemos todos ricos, educados, poderosos, brancos, jovens, belos, machos, felizes, como se todos estivéssemos com boa saúde, como se todos tivéssemos um carrão... Mas isso, obviamente, não é verdade. Por isso, tenho o direito de gritar, de estar de mau humor, de não sorrir idiotamente todo o tempo, de dar a minha opinião quando vejo coisas não-normais e injustas, e até de insultar as pessoas. Tenho o direito de protestar.”
(Fragmentos retirados do livro Como me tornei estúpido, de Martin Page.)